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Obama divulga opiniões do DOJ sobre técnicas de interrogação e ‘anistia’ agentes envolvidos em seu uso

Acaba de ser noticiado (agradecimento a OpinioJuris) que o Presidente dos EUA, Barack Obama, rejeitando  mais uma política de seu antecessor, divulgou quatro opiniões do equivalente norteamericano do nosso Ministério da Justiça (o Department of Justice ou ‘DOJ’) que tratavam da questão das técnicas autorizadas para interrogatórios conduzidos pela CIA. Os documentos estavam até então classificados como secretos, e seu caráter sigiloso fora defendido rigorosamente pela administração do Presidente Bush.

A análise detalhada destes documentos ainda está sendo feita por juristas dos EUA e de outras partes, a começar pelos advogados da American Civil Liberties Union que conduziram a batalha para a publicação desses documentos. A decisão do atual governo é louvável entre outras coisas por dar mais elementos para esclarecer até que ponto o governo americano sabia, formalmente, do caráter ilegal de certas técnicas, como a tortura por afogamento (waterboarding).

Aparentemente, as opiniões do DOJ eram mais nuançadas do que alegara  a administração Bush, cujo mantra, repetido em todos os níveis, era que ‘os EUA não torturam, nunca torturaram e não tolerarão a tortura’ e de que as ‘técnicas avançadas de interrogação’ autorizadas em ‘alguns casos’ e contra suspeitos de ‘alto valor’ não constituíam tortura. Ao mesmo tempo, fizeram tudo em seu poder para manter as opiniões legais sobre esse tema escondidas, e para excluir esse tema da apreciação de qualquer juízo por tribunais federais americanos, mesmo no contexto dos procedimentos de habeas corpus.

Técnicas como o afogamento simulado, a privação de sono, e a exposição a extremos sensoriais ou de temperatura haviam sido consideradas ilegais pelo Departamento de Estado e Judiciário americanos quando praticadas por outros (ver uma análise mais detalhada, em inglês, aqui), ou quando praticadas pelas forças armadas americanas. Mas a CIA e, supostamente, outras agências do complexo sistema de serviço secreto americano não estavam sujeitas às mesmas regras (e há muito, como o notório manual de operaciones psicológicas, objeto de uma análise pela CIJ no Caso das atividades militares e paramilitares dos EUA na Nicarágua atesta).  As mesmas técnicas recebiam o opróbio e condenação de outras jurisdições internacionais e nacionais, como atestam casos das Cortes européia e interamericana de direitos humanos, a prática constante do Comitê contra a Tortura das NUs, e casos nacionais em diversas jurisdições.

Mas a boa notícia veio acompanhada de uma pílula um tanto amarga. Obama também afirmou que não autorizaria o inquérito e eventual juízo de agentes da CIA que tivessem ‘levado a cabo suas obrigações confiando, em boa fé, na opinião legal do DOJ‘ (‘In releasing these memos, it is our intention to assure those who carried out their duties relying in good faith upon legal advice from the Department of Justice that they will not be subject to prosecution‘, no original) , o que equivale, pelo menos à primeira vista, a uma anistia.

Cabe saber qual será a extensão efetiva dessa ‘anistia’. À primeira vista, ela poderia ser lida como uma ‘exclusão de ilicitude por cumprimento estrito do dever’, o que contraria frontalmente os princípios de Nurenberg: faz algum tempo que já não mais se considera que ‘obedecer ordens’ seja suficiente para excluir a aplicação da sanção penal, pelo menos não no contexto do direito internacional humanitário (infelizmente, no direito penal brasileiro esse princípio ainda vigora, com vergonhosas aplicações, como a decisão do TJ-SP no caso do Coronel Ubiratan Guimarães; para ler uma opinião favorável à decisão, da qual discordo, ver aqui).

Mas como apontado no texto da OpinioJuris, précitado, há que considerar se todos os atos de interrogação poderiam ser considerados — em uma análise objetiva — como sendo executados confiando ‘em boa fé’ na legalidade do ato. Ora, emerge dos documentos recém liberados, que os atos praticados (1) iam bem além do que fora autorizado; e (2) não podiam ser considerados como autorizações incontestáveis. Sobre este segundo ponto, lê-se com clareza em  uma das opiniões que não havia certeza sobre a legalidade do ato, mas sim da não justiciabilidade do mesmo. Ora, uma opinião dessa natureza não pode ser considerada como uma opinião inequívoca da legalidade do ato. Consequentemente, não se poderia dizer que um agente da CIA, agindo sob base desse memorando, poderia alegar que acreditava na legalidade do ato, em razão de uma leitura de boa fé da dita opinião.

Será interessante ver como essa nova atitude do governo será avaliada por outros governos, organizações internacionais e órgãos judiciais como o espanhol, que preparava-se para indiciar os consultores legais do DOJ pelo crime de tortura.

CIDH leva Brasil à Corte Interamericana no caso da Guerrilha do Araguaia

Matthias Sant’Ana

A Comissão interamericana de direitos humanos acaba de emitir um comunicado de imprensa pelo qual informa que apresentou o Caso da Guerrilha do Araguaia diante da Corte interamericana de direitos humanos, em São José da Costa Rica:

O caso está relacionado à detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região, como resultado de operações empreendidas entre 1972 e 1975 pelo Exército brasileiro a fim de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar no Brasil (1964-1985).  Do mesmo modo, relaciona-se com a Lei de Anistia (Lei No. 6.683/79), que foi promulgada pelo governo militar do Brasil, e em virtude da qual o Estado não realizou uma investigação penal com o propósito de julgar e sancionar os responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 pessoas e pela execução extrajudicial de Maria Lucia Petit da Silva, cujos restos mortais foram encontrados e identificados em 14 de maio de 1996.

O caso fora declarado admissível pela referida Comissão em 6 de março de 2001, mas desde então não se tinha notícia do estado do procedimento. Nada de surpreendente, considerando que procedimentos na Comissão são sigilosos, e que o caso era de uma complexidade considerável.

A nota de imprensa afirma, adicionalmente, que:

A submissão do caso à Corte apresenta uma nova oportunidade para consolidar a jurisprudência sobre as leis de anistia com relação aos desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais e à obrigação dos Estados de investigar, processar e sancionar graves violações dos direitos humanos.

De fato, o Brasil tem agido com um certo atraso na questão da reconstituição da verdade, e não tem feito esforços suficientes para acabar com a  impunidade com relação aos crimes cometidos pelo regime ditatorial. Não houve uma comissão de verdade e justiça, como na África do Sul, ou no Paraguai. Tampouco houve juízos contra os ditadores, como no caso da Grécia, que puniu severamente a Junta dos Coronéis, parcos 2 anos depois do retorno da democracia àquele país (Pattakos e Papadopoulos, os principais líderes, foram condenados à morte, mas suas sentenças foram comutadas a penas perpétuas).

O tema é sem dúvida sensível, e não apenas em setores militares (como atesta o debate recente sobre a lei de anistia e o crime de tortura; ver aqui, aqui e aqui). Mas não há duvida de que a tendência no continente, e na prática constante da Comissão e da Corte interamericanas é de considerar as leis de anistia incompatíveis com os artigos 8 e 25 da Convenção americana de direitos humanos. Assim, os judiciários na Argentina e no Chile começaram, recentemente, a julgar militares que estiverem envolvidos nos regimes ditatorias daqueles países.

É difícil especular sobre como a Corte decidirá o caso sem ter acesso às alegações da Comissão e do Estado brasileiro. Mas se a Corte for coerente com sua prática até agora, o mais provável é que o Brasil seja condenado. Aliás, poderia ser interessante — de um ponto de vista puramente estratégico — que o Brasil reconheça responsabilidade internacional ao invés de contestá-la.

Tendo dito isso, há certamente inúmeros aspectos técnicos que sugerem que o Brasil poderia talvez evitar a condenação, pelo menos em parte. O Brasil vem adotando inúmeras leis que tendem a reconhecer a responsabilidade do país por violações dos direitos humanos, e vem igualmente indenizando vítimas. O problema essencial, no entanto, é a ausência de investigação — aquilo que chamei de ‘reconstituição da verdade’, acima.

A lei de anistia brasileira é uma aberração jurídica não apenas porque impede a punição dos autores de crimes contra os direitos humanos cometidos durante a ditadura. Ela é particularmente anti-democrática porque impede até mesmo a investigação dos fatos ocorridos. Como saber se houve violação do direito à vida, ou à integridade, como saber se fulano ou ciclano foram os autores dos crimes e beltrano a vítima, se a lei de anistia sequer permite a abertura de inquéritos?

O caso da Guerrilha do Araguaia é emblemático por mostrar o quão pouco o sistema judicial brasileiro ajudou na elucidação da verdade. Vale lembrar que, conforme a decisão de admissibilidade, a busca dos familiares tem mais de 27 anos:

Com  a reabertura democrática, mais precisamente em 1982, familiares de 22 das pessoas desaparecidas ingressaram com uma ação na Justiça Federal no Distrito Federal, solicitando fosse determinado o paradeiro dos desaparecidos, e fossem localizados os seus restos mortais, para que pudesse ser dado um enterro digno e para que fossem averbadas as certidões de óbito. Em um primeiro momento o judiciário nacional deu um trâmite regular ao processo, solicitando documentos às autoridades do Poder Executivo, e intimando testemunhas. No entanto, em 27 de março de 1989, após a substituição do Juiz responsável pelo caso, a ação foi julgada extinta sem julgamento do mérito, sob o fundamento de que o pedido era jurídica e materialmente impossível. (§23; ênfase nossa)

Não buscavam indenizações. Não buscavam a punição dos culpados. Não queriam vingança. Queriam simplesmente estabelecer o paradeiro dos desaparecidos, e dar um enterro digno aos seus familiares vitimados pelo regime.

Por mais difícil que seja para certos setores da sociedade aceitar a necessidade de olhar para o passado com honestidade e atribuir responsabilidade pelos horrores ocorridos, esse é o caminho que devemos seguir. O caso diante da Corte interamericana, terceiro caso contra o Brasil, ante aquela corte, poderá nos ajudar a enfrentar essa dificuldade e fazer evoluir a democracia brasileira.


abril 2024
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