Arquivo para 17 de abril de 2009

Obama divulga opiniões do DOJ sobre técnicas de interrogação e ‘anistia’ agentes envolvidos em seu uso

Acaba de ser noticiado (agradecimento a OpinioJuris) que o Presidente dos EUA, Barack Obama, rejeitando  mais uma política de seu antecessor, divulgou quatro opiniões do equivalente norteamericano do nosso Ministério da Justiça (o Department of Justice ou ‘DOJ’) que tratavam da questão das técnicas autorizadas para interrogatórios conduzidos pela CIA. Os documentos estavam até então classificados como secretos, e seu caráter sigiloso fora defendido rigorosamente pela administração do Presidente Bush.

A análise detalhada destes documentos ainda está sendo feita por juristas dos EUA e de outras partes, a começar pelos advogados da American Civil Liberties Union que conduziram a batalha para a publicação desses documentos. A decisão do atual governo é louvável entre outras coisas por dar mais elementos para esclarecer até que ponto o governo americano sabia, formalmente, do caráter ilegal de certas técnicas, como a tortura por afogamento (waterboarding).

Aparentemente, as opiniões do DOJ eram mais nuançadas do que alegara  a administração Bush, cujo mantra, repetido em todos os níveis, era que ‘os EUA não torturam, nunca torturaram e não tolerarão a tortura’ e de que as ‘técnicas avançadas de interrogação’ autorizadas em ‘alguns casos’ e contra suspeitos de ‘alto valor’ não constituíam tortura. Ao mesmo tempo, fizeram tudo em seu poder para manter as opiniões legais sobre esse tema escondidas, e para excluir esse tema da apreciação de qualquer juízo por tribunais federais americanos, mesmo no contexto dos procedimentos de habeas corpus.

Técnicas como o afogamento simulado, a privação de sono, e a exposição a extremos sensoriais ou de temperatura haviam sido consideradas ilegais pelo Departamento de Estado e Judiciário americanos quando praticadas por outros (ver uma análise mais detalhada, em inglês, aqui), ou quando praticadas pelas forças armadas americanas. Mas a CIA e, supostamente, outras agências do complexo sistema de serviço secreto americano não estavam sujeitas às mesmas regras (e há muito, como o notório manual de operaciones psicológicas, objeto de uma análise pela CIJ no Caso das atividades militares e paramilitares dos EUA na Nicarágua atesta).  As mesmas técnicas recebiam o opróbio e condenação de outras jurisdições internacionais e nacionais, como atestam casos das Cortes européia e interamericana de direitos humanos, a prática constante do Comitê contra a Tortura das NUs, e casos nacionais em diversas jurisdições.

Mas a boa notícia veio acompanhada de uma pílula um tanto amarga. Obama também afirmou que não autorizaria o inquérito e eventual juízo de agentes da CIA que tivessem ‘levado a cabo suas obrigações confiando, em boa fé, na opinião legal do DOJ‘ (‘In releasing these memos, it is our intention to assure those who carried out their duties relying in good faith upon legal advice from the Department of Justice that they will not be subject to prosecution‘, no original) , o que equivale, pelo menos à primeira vista, a uma anistia.

Cabe saber qual será a extensão efetiva dessa ‘anistia’. À primeira vista, ela poderia ser lida como uma ‘exclusão de ilicitude por cumprimento estrito do dever’, o que contraria frontalmente os princípios de Nurenberg: faz algum tempo que já não mais se considera que ‘obedecer ordens’ seja suficiente para excluir a aplicação da sanção penal, pelo menos não no contexto do direito internacional humanitário (infelizmente, no direito penal brasileiro esse princípio ainda vigora, com vergonhosas aplicações, como a decisão do TJ-SP no caso do Coronel Ubiratan Guimarães; para ler uma opinião favorável à decisão, da qual discordo, ver aqui).

Mas como apontado no texto da OpinioJuris, précitado, há que considerar se todos os atos de interrogação poderiam ser considerados — em uma análise objetiva — como sendo executados confiando ‘em boa fé’ na legalidade do ato. Ora, emerge dos documentos recém liberados, que os atos praticados (1) iam bem além do que fora autorizado; e (2) não podiam ser considerados como autorizações incontestáveis. Sobre este segundo ponto, lê-se com clareza em  uma das opiniões que não havia certeza sobre a legalidade do ato, mas sim da não justiciabilidade do mesmo. Ora, uma opinião dessa natureza não pode ser considerada como uma opinião inequívoca da legalidade do ato. Consequentemente, não se poderia dizer que um agente da CIA, agindo sob base desse memorando, poderia alegar que acreditava na legalidade do ato, em razão de uma leitura de boa fé da dita opinião.

Será interessante ver como essa nova atitude do governo será avaliada por outros governos, organizações internacionais e órgãos judiciais como o espanhol, que preparava-se para indiciar os consultores legais do DOJ pelo crime de tortura.


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